Cristianismo na África: portugueses confundiram a Etiópia com um reino lendário no século 16
Navegantes portugueses acreditaram estar no reino de Preste João e acabaram expulsos do continente
TEXTO Bárbara Bretanha | ILUSTRAÇÕES Hafaell | 08/08/2014 17h41
Ao desembarcarem na costa da Etiópia, no leste da África, em meados do século 16, os portugueses foram surpreendidos com o que viram. Conhecida por vários nomes, como Terra de Pount e reino da Abissínia, era uma incógnita para os europeus. Mas os navegadores encontraram ali igrejas cuja arquitetura rivalizava com as europeias tanto em escala quanto em nível de sofisticação. Em vez dos selvagens e hereges que ocupavam o imaginário popular da época, os europeus foram apresentados a um país cosmopolita, que praticava o cristianismo havia mais de um milênio.
Os recém-chegados não tiveram dúvida: estavam no lendário reino de Preste João, o mítico soberano cristão que auxiliaria na luta contra os muçulmanos e, com seu impressionante Exército, tomaria a Terra Santa. Preste é uma corruptela de padre. O rei viveria em algum lugar do Oriente, inalcançável aos europeus – relatos de sua existência apareciam em todas as correspondências de enviados para a Ásia. Mas agora os portugueses estavam ali – e tudo era de verdade. Como escreveu o padre Manuel de Almeida, a nação era uma “quimera, nem fictícia nem imaginária, mas real”. No entanto, os europeus logo perceberam que havia divergências entre sua fé e a daquele povo. Membro da Companhia de Jesus, Almeida diria ainda que “esta nação é a mais estranha monstruosidade que a África, a mãe dos monstros, criou nas suas remotas e selvagens selvas”.
A lenda
A confusão teve início séculos antes, em 1165, quando uma carta começou a circular nas cortes europeias, enviada ao imperador de Bizâncio e ao papa Alexandre III. Assinada por um sacerdote cristão e soberano de um reino incrível, prometia apoio aos cruzados que estavam sendo atacados por muçulmanos na Palestina. O Preste João seria descendente de um dos reis magos que visitaram Jesus. Sob seu comando, marchavam milhares de outros nobres e soldados, carregando cruzes de ouro, incrustadas com joias raras. No coração de seu reino, uma fonte de água vinda diretamente do céu garantia a juventude eterna. De acordo com o relato, o Exército do Preste estava a caminho da Terra Santa quando uma doença o forçou a retornar às suas terras, situadas em algum ponto das Índias, local inexato nos mapas da época.
Os portugueses tomaram o relato a sério e teve início a busca pelas terras misteriosas do rei cristão – a lenda do Preste João contaminou toda a Europa. Procurado desde os tempos do Infante dom Henrique, o reino foi “descoberto” várias vezes. Ora na Mesopotâmia, ora na Arábia ou na Ásia – os expedicionários chegaram a buscá-lo até mesmo na costa ocidental da África. Marco Polo, em suas viagens, julgou ter conhecido o fabuloso rei na Mongólia. Mas foi só em 1494 que o navegador Pêro da Covilhã, enviado por dom João II, atracou no porto de Zeila, na Etiópia. Embora já houvesse relatos de monges etíopes em Jerusalém, pouco se sabia sobre a terra naquele momento.
Ao chegar, Covilhã foi recebido pelo negus, ou rei etíope, Eskender. Assim como na lenda de Preste João, ele vinha combatendo a expansão do islamismo, mas fora empurrado da costa para o interior do continente. O negus morreu pouco depois e Covilhã foi proibido de deixar o país. Aconselhada pelo português, a rainha Eleni enviou um emissário para Lisboa, solicitando apoio na batalha contra o inimigo comum, mas as primeiras tentativas de diplomacia entre as nações falharam quando a delegação portuguesa teve dificuldades ao atravessar o Mar Vermelho e foi obrigada a retornar.
Cinco anos depois, uma nova representação diplomática portuguesa foi enviada à Etiópia. Em 1520, a relação entre os reinos foi oficializada. O padre Francisco Álvares, que acompanhou a delegação, passou seis anos nas terras africanas e publicou um livro intitulado Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias, em que descrevia o soberano como “novo e não muito preto, seria de cor castanha ou de maçã baionesa não muito parda e em sua cor bem gentil-homem”. Antes de voltar, o clérigo reencontrou Covilhã – que recusou o convite de retornar para Portugal, pois, além de se tornar senhor de um grande feudo, casara-se com uma mulher local.
A aliança vinha em boa hora. Pressionada por inimigos turcos, munidos de armas de fogo, a realeza etíope foi forçada a buscar refúgio nas montanhas, cedendo o controle da rota comercial do Mar Vermelho aos muçulmanos. Em uma inversão do mito, os europeus foram chamados para resgatar o soberano. O filho de Vasco da Gama, Cristóvão, foi enviado com uma tropa de 400 homens armados com canhões para auxiliar no combate, mas acabou decapitado. Reunidos sob comando do jovem negus Galadevos, os sobreviventes venceram o inimigo. O incidente serviu para acentuar a diferença entre a lenda e a realidade do reino de Preste João.
Raízes profundas
A adoção do cristianismo na Etiópia remonta ao século 4, quando a religião foi trazida por mercadores egípcios. O porto de Adulis, onde se comercializava marfim, especiarias, incenso e escravos, pusera o reino de Axum em contato com os egípcios mais de 2 mil anos antes de Cristo.
O livro Périplo do Mar Eritreu, um guia de viagens do século 1, descreve o reino como uma das maiores potências da época, junto de Roma, Pérsia e China. Localizado no eixo das principais rotas comerciais do Mar Vermelho, entre a Índia e o Império Romano, o reino estava sob a jurisdição de Alexandria – onde já se praticava a fé desde o ano 313. Os antigos imperadores etíopes seguiam o Antigo Testamento, influenciados pelos semitas.
Ruptura
“Os portugueses consideraram os governantes da Etiópia sucessores de Preste João ao chegarem lá, mas perceberam que na verdade havia ali um cristianismo com doutrina e rituais independentes”, afirma o historiador José Rivair Macedo, autor de História da África. Hostilizado por causa de seus costumes, o embaixador etíope Saga za Ab não foi aceito como cristão pela corte de dom João III. “A influência multicultural, como o monofisismo, desenvolvido a partir do Egito, que valoriza a figura divina de Jesus, assim como crenças judaicas incorporadas pela proximidade com a Arábia e as trocas iconográficas com cultos africanos locais cedem ao cristianismo etíope um perfil muito diferente do latino”, diz Macedo. Hábitos como o rebatismo anual, a aceitação do divórcio, o casamento de padres, circuncisão, proibições alimentares e o rito do sábado, que não eram praticados dentro da Igreja portuguesa, faziam parte do culto etíope. Sob ordens de dom João III, missionários jesuítas foram enviados para o reino, para tentar converter os africanos à “verdadeira fé”. Os etíopes recusaram a conversão e optaram por continuar respondendo à Igreja Copta de Alexandria e não ao papado de Roma. A tentativa estremeceu a relação dos reinos e, em 1634, os etíopes se uniram aos muçulmanos para expulsar os jesuítas.
O livro Kebra Nagast, “Glória dos Reis”, do século 13, que detalha a linhagem dos imperadores africanos, afirma que a rainha de Sabá, curiosa para testar a sabedoria do rei Salomão, partiu para seu templo em Jerusalém. O encontro resultou em um filho, Menelik I. Ele ganhou do pai a Arca da Aliança, que continha os Dez Mandamentos, e a teria levado para a Etiópia em 950 a.C.
Se o judaísmo já tinha raízes na cultura etíope, o cristianismo foi transplantado por um bispo alexandrino em 333. O grego Frumêncio, capturado por piratas em uma viagem comercial, foi levado ao rei de Axum e se tornou membro de sua corte. Batizou o herdeiro do trono, o príncipe Ezana, que se tornaria o primeiro rei cristão do país. As moedas axumitas, que traziam o símbolo da Lua crescente e do Sol, passaram a ser cunhadas com a cruz. Com o avanço dos muçulmanos pelo Mar Vermelho e a conquista da Síria e do Egito, em meados do século 7, porém, o reino viveu um período de isolamento e o império axumita entrou em decadência. As moedas de Ezana sairiam de circulação. Ainda assim, a relação entre o sangue bíblico e o poder político se sustentou até 1974, quando o negus Haile Selassie foi deposto por um golpe militar. Transformado em deus pelo movimento rastafári, foi o último imperador salomônico do país.
Os recém-chegados não tiveram dúvida: estavam no lendário reino de Preste João, o mítico soberano cristão que auxiliaria na luta contra os muçulmanos e, com seu impressionante Exército, tomaria a Terra Santa. Preste é uma corruptela de padre. O rei viveria em algum lugar do Oriente, inalcançável aos europeus – relatos de sua existência apareciam em todas as correspondências de enviados para a Ásia. Mas agora os portugueses estavam ali – e tudo era de verdade. Como escreveu o padre Manuel de Almeida, a nação era uma “quimera, nem fictícia nem imaginária, mas real”. No entanto, os europeus logo perceberam que havia divergências entre sua fé e a daquele povo. Membro da Companhia de Jesus, Almeida diria ainda que “esta nação é a mais estranha monstruosidade que a África, a mãe dos monstros, criou nas suas remotas e selvagens selvas”.
A lenda
A confusão teve início séculos antes, em 1165, quando uma carta começou a circular nas cortes europeias, enviada ao imperador de Bizâncio e ao papa Alexandre III. Assinada por um sacerdote cristão e soberano de um reino incrível, prometia apoio aos cruzados que estavam sendo atacados por muçulmanos na Palestina. O Preste João seria descendente de um dos reis magos que visitaram Jesus. Sob seu comando, marchavam milhares de outros nobres e soldados, carregando cruzes de ouro, incrustadas com joias raras. No coração de seu reino, uma fonte de água vinda diretamente do céu garantia a juventude eterna. De acordo com o relato, o Exército do Preste estava a caminho da Terra Santa quando uma doença o forçou a retornar às suas terras, situadas em algum ponto das Índias, local inexato nos mapas da época.
Os portugueses tomaram o relato a sério e teve início a busca pelas terras misteriosas do rei cristão – a lenda do Preste João contaminou toda a Europa. Procurado desde os tempos do Infante dom Henrique, o reino foi “descoberto” várias vezes. Ora na Mesopotâmia, ora na Arábia ou na Ásia – os expedicionários chegaram a buscá-lo até mesmo na costa ocidental da África. Marco Polo, em suas viagens, julgou ter conhecido o fabuloso rei na Mongólia. Mas foi só em 1494 que o navegador Pêro da Covilhã, enviado por dom João II, atracou no porto de Zeila, na Etiópia. Embora já houvesse relatos de monges etíopes em Jerusalém, pouco se sabia sobre a terra naquele momento.
Ao chegar, Covilhã foi recebido pelo negus, ou rei etíope, Eskender. Assim como na lenda de Preste João, ele vinha combatendo a expansão do islamismo, mas fora empurrado da costa para o interior do continente. O negus morreu pouco depois e Covilhã foi proibido de deixar o país. Aconselhada pelo português, a rainha Eleni enviou um emissário para Lisboa, solicitando apoio na batalha contra o inimigo comum, mas as primeiras tentativas de diplomacia entre as nações falharam quando a delegação portuguesa teve dificuldades ao atravessar o Mar Vermelho e foi obrigada a retornar.
Cinco anos depois, uma nova representação diplomática portuguesa foi enviada à Etiópia. Em 1520, a relação entre os reinos foi oficializada. O padre Francisco Álvares, que acompanhou a delegação, passou seis anos nas terras africanas e publicou um livro intitulado Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias, em que descrevia o soberano como “novo e não muito preto, seria de cor castanha ou de maçã baionesa não muito parda e em sua cor bem gentil-homem”. Antes de voltar, o clérigo reencontrou Covilhã – que recusou o convite de retornar para Portugal, pois, além de se tornar senhor de um grande feudo, casara-se com uma mulher local.
A aliança vinha em boa hora. Pressionada por inimigos turcos, munidos de armas de fogo, a realeza etíope foi forçada a buscar refúgio nas montanhas, cedendo o controle da rota comercial do Mar Vermelho aos muçulmanos. Em uma inversão do mito, os europeus foram chamados para resgatar o soberano. O filho de Vasco da Gama, Cristóvão, foi enviado com uma tropa de 400 homens armados com canhões para auxiliar no combate, mas acabou decapitado. Reunidos sob comando do jovem negus Galadevos, os sobreviventes venceram o inimigo. O incidente serviu para acentuar a diferença entre a lenda e a realidade do reino de Preste João.
Raízes profundas
A adoção do cristianismo na Etiópia remonta ao século 4, quando a religião foi trazida por mercadores egípcios. O porto de Adulis, onde se comercializava marfim, especiarias, incenso e escravos, pusera o reino de Axum em contato com os egípcios mais de 2 mil anos antes de Cristo.
O livro Périplo do Mar Eritreu, um guia de viagens do século 1, descreve o reino como uma das maiores potências da época, junto de Roma, Pérsia e China. Localizado no eixo das principais rotas comerciais do Mar Vermelho, entre a Índia e o Império Romano, o reino estava sob a jurisdição de Alexandria – onde já se praticava a fé desde o ano 313. Os antigos imperadores etíopes seguiam o Antigo Testamento, influenciados pelos semitas.
Ruptura
“Os portugueses consideraram os governantes da Etiópia sucessores de Preste João ao chegarem lá, mas perceberam que na verdade havia ali um cristianismo com doutrina e rituais independentes”, afirma o historiador José Rivair Macedo, autor de História da África. Hostilizado por causa de seus costumes, o embaixador etíope Saga za Ab não foi aceito como cristão pela corte de dom João III. “A influência multicultural, como o monofisismo, desenvolvido a partir do Egito, que valoriza a figura divina de Jesus, assim como crenças judaicas incorporadas pela proximidade com a Arábia e as trocas iconográficas com cultos africanos locais cedem ao cristianismo etíope um perfil muito diferente do latino”, diz Macedo. Hábitos como o rebatismo anual, a aceitação do divórcio, o casamento de padres, circuncisão, proibições alimentares e o rito do sábado, que não eram praticados dentro da Igreja portuguesa, faziam parte do culto etíope. Sob ordens de dom João III, missionários jesuítas foram enviados para o reino, para tentar converter os africanos à “verdadeira fé”. Os etíopes recusaram a conversão e optaram por continuar respondendo à Igreja Copta de Alexandria e não ao papado de Roma. A tentativa estremeceu a relação dos reinos e, em 1634, os etíopes se uniram aos muçulmanos para expulsar os jesuítas.
O livro Kebra Nagast, “Glória dos Reis”, do século 13, que detalha a linhagem dos imperadores africanos, afirma que a rainha de Sabá, curiosa para testar a sabedoria do rei Salomão, partiu para seu templo em Jerusalém. O encontro resultou em um filho, Menelik I. Ele ganhou do pai a Arca da Aliança, que continha os Dez Mandamentos, e a teria levado para a Etiópia em 950 a.C.
Se o judaísmo já tinha raízes na cultura etíope, o cristianismo foi transplantado por um bispo alexandrino em 333. O grego Frumêncio, capturado por piratas em uma viagem comercial, foi levado ao rei de Axum e se tornou membro de sua corte. Batizou o herdeiro do trono, o príncipe Ezana, que se tornaria o primeiro rei cristão do país. As moedas axumitas, que traziam o símbolo da Lua crescente e do Sol, passaram a ser cunhadas com a cruz. Com o avanço dos muçulmanos pelo Mar Vermelho e a conquista da Síria e do Egito, em meados do século 7, porém, o reino viveu um período de isolamento e o império axumita entrou em decadência. As moedas de Ezana sairiam de circulação. Ainda assim, a relação entre o sangue bíblico e o poder político se sustentou até 1974, quando o negus Haile Selassie foi deposto por um golpe militar. Transformado em deus pelo movimento rastafári, foi o último imperador salomônico do país.
Uma nova Jerusalém |
Quando o reino de Axum perdeu influência, a capital foi transferida para a cidade de Lalibela. De acordo com o imperador Gebre Meskel, o Lalibela, Deus ordenou a construção de onze igrejas. Esculpidas na montanha, e cortadas, com extrema precisão, diretamente na pedra maciça, elas mesclam imagens e influências de todo o mundo cristão. A lenda diz que anjos desceram dos céus para auxiliar na construção, terminando as obras em pouquíssimo tempo. Um estudo do arqueólogo francês François-Xavier Fauvelle determinou que as construções tiveram início no século 12, mas foram completadas no 15. Lalibela, que descendia da dinastia não salomônica Zagwe, pretendia legitimar seu reinado com o projeto. “O objetivo era fortalecer o poder com o cristianismo original de um ponto de vista simbólico, com a aproximação de Jerusalém”, afirma o historiador José Rivair Macedo. Funcionou. Lalibela se tornou um centro de peregrinações. O local é tão impressionante que é considerado patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. O padre Francisco Álvares, ao avistar as igrejas pela primeira vez, ficou espantado. Ele achou melhor incluir um aviso ao falar da arquitetura da cidade. “Juro por Deus que todo o escrito é verdade e é muito mais do que escrevi e o deixei por não me taxarem de mentiroso.” |
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