Clóvis Moura, o dicionário da escravidão negra no Brasil
DIÁRIO DA MANHÃ
MARTINIANO J. SILVA
Clóvis Steiger de Assis Moura, historiador, sociólogo, poeta, professor e escritor. Comunista. Nasceu no Amarante-Piauí, em 10 de julho de 1925. Levaram-no para o mundo do além há 10 anos, em 23 de dezembro de 2003, em São Paulo. Como diz José Carlos Ruy, do Conselho Editorial da Revista Princípios, da mesma cidade, “Mas sua presença permanece entre os lutadores contra o racismo, pela liberdade, pelo socialismo”. Entre seus tantos livros publicados, certamente não ficarão entre os da classe dos de “todos os tempos” somente o clássico Rebeliões da Senzala. Dentre outros, já nasceu consagrado o inédito Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, justificando a epígrafe, da Edusp (2004), tendo como sua assessora de pesquisa, sua filha, também historiadora, Soraya Silva Moura.
Tomei conhecimento que Clóvis Moura, ao perceber que a morte o levaria, não sei para onde, antes da edição do Dicionário, de tão fiel aos seus amigos, a quem devotava muito respeito, sem perdoá-los, até no deboche, deixou uma lista dos seus nomes e endereços, por certo com a Editora, para que enviasse o Dicionário. Orgulhosamente, faço parte dessas pessoas que receberam este importante Léxico, em suas casas, quando o querido Clóvis Moura já havia desaparecido na imponderável e sombria noite dos tempos, para onde deve ter ido proferir suas belas e incríveis aulas de bondade, coragem, dignidade e honradez, dificílimas de serem encontradas por aqui. Ao receber o Dicionário, tomado pelas justas emoções, de todo modo, sempre efêmeras e perigosas, esqueci-me de registrar a data, fazendo-o com relação ao ano: “Com enorme carinho ponho meu nome neste livro – 2005. Martiniano J. Silva”.
Obra rara, oportuna, imprescindível ao Brasil, às Américas e ao Universo, onde paciência, dedicação, argúcia e coragem intelectuais como as de Clóvis Moura também não são fáceis de serem vislumbradas, imaginem, igualadas, podendo afirmar que são raríssimas nesse tempo de sociedade “mundializada”, inimiga do silêncio, intensamente apressada, consumista, até irritante, deixando a impressão de que ruído faz parte da vida. De tão sôfregas, as pessoas querem ser célebres de um dia para a noite, ou só em alguns dias, nalgum programa televisivo, completamente diferentes de quem escreveu um Dicionário em trinta anos, como Clovis Moura! E vejam que sua obra já era famosa, inovadora da história do negro brasileiro e ainda teve que se empenhar em um tempo longo de intensos estudos, minuciosas pesquisas e profundas reflexões, devendo ser por isso, decerto, que o Dicionário da Escravidão Negra no Brasil já está reconhecido como obra de referência. E notem, ainda, que foi muito difícil para conseguir uma Editora, editar o livro. Foram vários encaminhamentos, sem resultado. Quanta luta! Mas Clovis Moura não desanimava. Era um homem de bravura intelectual a toda prova. Só o seu talento raro, conseguiu levá-lo à prestigiada Editora da USP. Era incansável.
Foi assim que conseguiu escrever seu grandioso Dicionário com mais de oitocentos verbetes, segundo informa a própria Editora, no anverso, pacientemente “...inventaria, de forma crítica, todo o conhecimento de áreas tão distintas como história, literatura, economia, religião e costumes”, podendo, pois, ser referência, citada, inédita no país, “abrindo ao leitor novas maneiras de compreensão da exclusão humana, social e cultural imposta ao negro no Brasil, um drama nacional que pode ser percebido ainda nos dias de hoje”. É por isso, por certo, que o inesquecível Clóvis Moura, no dizer seguro do seu amigo, prefaciador do livro, João Batista Borges Pereira, da USP, o definiu como “..um cientista social brilhante e disciplinado que sempre correu por fora da academia – solto, livre, nas franjas da interdisciplinaridade – ainda que a academia brasileira tenha constantemente solicitado a sua presença em eventos, conferências, seminários e, especialmente, em exames de teses na qualidade de professor ‘notório saber’, título que há anos lhe foi outorgado pela universidade de São Paulo”.
Vejam que se trata de trajetória notável, fazendo o seu trabalho solitariamente, sem medo e sem receio de desagradar os tais “donos do conhecimento” ou de quem quer que seja, no Brasil ou outras diásporas, onde sua personalidade e dignidade singulares, não tem como não serem admiráveis. É dele que guardo no mais silencioso das gavetas das minhas saudades, dos tempos difíceis em que nos comunicávamos, as amareladas cartas que me enviou de São Paulo, por sua bondade ou respondendo-me as que lhe havia enviado, nas minhas muitas dúvidas de aprendiz de historiador; ora convidando-me para oportunos encontros culturais que me fizeram tanto bem nas minhas carências de conhecimento, ainda fazendo parte da minha solidão intelectual cá nesse extremo Sudoeste de Goiás. É assim que desejo reverenciar o imperecível Clovis Moura no décimo ano do seu desaparecimento da terra do Pindorama. É também assim que quero recordá-lo por sua obra grandiosa, toda pensada e escrita na solidão espiritual de sua vasta Biblioteca, fora da academia, inicialmente reticente, até reconhecê-lo; destacando o Dicionário mencionado, no qual, só no último verbete, “Zumbi”, ocupou seis páginas de consistentes estudos históricos e historiográficos a respeito da vida e biografia desse herói da vida nacional, que a história oficial, por mais de uma vez, chegou a dizer que não existiu.
(Martiniano J. Silva, escritor, advogado, membro do Movimento Negro unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras e Mineirense de Letras e Artes, IHGGO, UBEGO, mestre em história social pela UFG, professor universitário, articulista do DM - martinianojsilva@yahoo.com.br)
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