Poesia - Retrato Quase Apagado em que se Pode ver Perfeitamente nada - Manoel de Barro
Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada de "O Guardador de Águas"
I
Não tenho bens de acontecimentos. O que não sei fazer desconto nas palavras. Entesouro frases. Por exemplo: - Imagens são palavras que nos faltaram. - Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem. - Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser. Ai frases de pensar! Pensar é uma pedreira. Estou sendo. Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo) Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos. Outras de palavras. Poetas e tontos se compõem com palavras.
II Todos os caminhos - nenhum caminho Muitos caminhos - nenhum caminho Nenhum caminho - a maldição dos poetas.
III Chove torto no vão das árvores. Chove nos pássaros e nas pedras. O rio ficou de pé e me olha pelos vidros. Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados. Crianças fugindo das águas Se esconderam na casa.
Baratas passeiam nas formas de bolo...
A casa tem um dono em letras.
Agora ele está pensando -
no silêncio Iíquido com que as águas escurecem as pedras...
Um tordo avisou que é março.
IV Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos. Ela pode ser o germe de uma apagada existência. Só trolhas e andarilhos poderão achá-la. Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão. Andei nas pedras negras de Alfama. Errante e preso por uma fonte recôndita. Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!
V Escrever nem uma coisa Nem outra - A fim de dizer todas Ou, pelo menos, nenhumas. Assim, Ao poeta faz bem Desexplicar - Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.
VI No que o homem se torne coisal, corrompem-se nele os veios comuns do entendimento. Um subtexto se aloja. Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras. Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas Coisa tão velha como andar a pé Esses vareios do dizer.
VII O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. Há que se dar um gosto incasto aos termos. Haver com eles um relacionamento voluptuoso. Talvez corrompê-los até a quimera. Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. Não existir mais rei nem regências. Uma certa luxúria com a liberdade convém.
VII Nas Metamorfoses, em 240 fábulas, Ovídio mostra seres humanos transformados em pedras vegetais bichos coisas Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval, pedral, etc. Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural
- Que os poetas aprenderiam - desde que voltassem às crianças que foram às rãs que foram às pedras que foram. Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar a língua. Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos? Seria uma demência peregrina.
IX Eu sou o medo da lucidez Choveu na palavra onde eu estava. Eu via a natureza como quem a veste. Eu me fechava com espumas. Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas. Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes. Nem era muito que eu me arrumasse por versos. Aquele arame do horizonte Que separava o morro do céu estava rubro. Um rengo estacionou entre duas frases. Uma descor Quase uma ilação do branco. Tinha um palor atormentado a hora. O pato dejetava liquidamente ali.
Manoel de Barro
poeta
antigo militante da UJC-União da Juventude Comunista.
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