domingo, 25 de setembro de 2016

A maior derrota Portuguesa na África Negra

Pembe, Angola, 25 de Setembro de 1904 - A Maior Derrota Portuguesa na África Negra



Completam-se hoje, 25 de Setembro de 2016, 112 anos sobre a data em que se produziu a maior derrota dos Portugueses na chamada África Negra.

Foi no Sul de Angola, a cerca de 500 quilómetros da costa, quando uma coluna comandada pelo governador da Huíla, João Aguiar (de que fazia parte Gomes da Costa, mais tarde famoso pela revolução portuguesa de 1926), se internou para lá do rio Cunene, através do vau do Pembe, numa campanha de início orientada contra a poderosa tribo dos Cuanhamas.

Os Portugueses, apanhados numa emboscada, caíram às mãos de outra tribo do grupo dos Ambós, os Cuamatos, e deixaram no local centenas de mortos, o que representou, à escala africana, uma trágica surpresa para a Europa colonizadora.

Foi há pouco mais de um século... Quem se lembra disto, nesta pátria de gratidões fugidias e efémeras?
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Transcrevem-se do livro "Senhores do Sol e do Vento" os momentos culminantes desse combate terrível e memorável, que fez estremecer nos alicerces a presença lusitana em Angola.
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"(...) O comandante da expedição dirige as operações da travessia a partir da margem direita, onde mandou improvisar um cais para os barcos de lona de que a coluna vem munida. Aguiar parece ter alimentado durante muito tempo a convicção de que não depararia com resistência significativa nas imediações do rio, o que lhe teria possibilitado acercar-se em dois ou três dias de Mogogo, no Cuamato Pequeno.
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Esse foi apenas um dos seus erros capitais. Com efeito, do outro lado das águas, por detrás da quietude aparente da mata de Mucohimo, oculta-se aos olhos dos Portugueses um perigo mortal: vindos de Mogogo, onde se realizara a concentra­ção, milhares de guerreiros cuamatos confundem-se, silenciosos e determinados, com as sombras do arvoredo, espiando, desde o início, os passos dos invasores. Trata-se na maioria de gente de Igura, o soba do Cuamato Pequeno. Mas há também aliados do Cuamato Grande, enviados de Nalueque pelo soba Chaúla. Organizadas em etangas - unidades dos exércitos ambós, de cem a seiscen­tos ho­mens, chefiadas por lengas -, as forças do Cuamato exibem um armamento hetero­géneo, mas em todo o caso temível. As espingardas mais aperfeiçoadas - Kropatscheck, Winchester, Mauser - foram distribuídas aos lengas e aos atirado­res especiais. Os parentes dos senhores importantes possuem armas Martini, ao passo que os guer­reiros comuns empunham espingardas Snider e de pistão. A gran­de massa do exército dispõe, todavia, do armamento tradicional - arco e flecha, za­gaia, punhal e porrinho, a mortífera moca, frequentemente eriçada de cabeças de pregos.
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O transporte dos soldados e do equipamento decorre com lentidão. Os carros passam com muita dificuldade, pois os rodados enterram-se a cada volta no leito arenoso e mole do rio. À medida que vão chegando à margem oposta, os ho­mens alinham-se de maneira a formarem um quadrado de trezentos metros de face. De súbito, ao meio-dia e quinze minutos, os Portugueses recebem o pri­meiro aceno do destino: seco e ameaçador, estala no interior da mata um tiro de espingarda. Sinal deliberado ou gesto inadvertido, o estrondo tem o condão de despertá-los para o perigo que se dissimula no arvoredo.
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Aguiar manda que se as­seste uma sec­ção de artilharia a jusante do vau, deslocando a Companhia Europeia de Infantaria para lhe prestar apoio. Gomes da Costa é incumbido de aguentar, com os Chimbas, eventuais investidas do inimigo. Todas as precauções se revelarão mais do que justificadas. Na verdade, daí em diante, à medida que se transferem para a margem esquerda, os Portugueses não mais deixam de ser apoquentados pelo fogo dos Cuamatos. Estes surgem e desaparecem onde e quando menos se espera, no que parece constituir uma paciente operação de enervamento e desgaste da coluna.
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A tarde vai adiantada quando grupos de cuamatos escalam o morro do Imbondeiro para mirarem provocadoramente as manobras dos invasores. Como estes lançam na sua direcção um pelotão de cavalaria e um bando de chim­bas, os guerreiros so­mem-se com rapidez na espessura da mata. Reaparecem duas horas mais tarde do lado da duna, à esquerda do quadrado, dirigindo um fogo inten­so sobre o comboio de carros que se vai arrumando em semicírculo. Mas não tardam a eclipsar-se.
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Fustigadas por descargas esporádicas, as tropas conti­nuam a traves­sia. As faces do quadrado, já rodeadas de trincheiras guarnecidas de arame farpa­do, adquirem con­sistência. Quando desce a noite, Aguiar distribui sen­tinelas avan­çadas a cinquenta metros do acampamento, mas quase não há repouso para nin­guém.
À boca da ma­drugada, enquanto prossegue no rio a passagem de homens e material, os guer­reiros de Igura, confundidos com as trevas, prosseguem o tiroteio. Não obstante, ao rom­per do dia 20 os invasores acham-se firmemente instalados na margem esquer­da e enviam sem novidade patrulhas de cavalaria e infantaria até à franja da mata. Pouco depois das sete e meia da manhã, um contingente cuamato irrompe das árvo­res e abre outra vez fogo contra o comboio de carros. Os Portugueses ripostam com os Chimbas. Os Cuamatos retrocedem, como de costume, para os seus esconderi­jos. À tarde, os homens de Igura abalançam-se a uma acção de maior envergadura: a partir da duna, da mata e do morro do Imbondeiro, des­dobram-se numa linha de atirado­res com oitocentos metros e castigam o quadrado. Os invasores empenham na reac­ção os auxiliares e alguns grupos regulares de in­fantaria, apoiados pela arti­lharia. Os Cuamatos recuam. Quando se internam ligei­ramente na floresta, os perse­guidores não vislumbram vivalma.
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À medida que as horas se escoam no vau, a situação dos Portugueses não sofre modificações relevantes. Continuam encolhidos no quadrado, confinados à beira do rio, sujeitos às investidas de um inimigo ardiloso que só de raro em raro se deixa avistar. Privados da iniciativa, limitam-se a reagir às acções dos Cuamatos. As baixas são insignificantes nos dois campos, mas a verdade é que a táctica de des­gaste dos chefes-de-guerra de Igura produz os seus frutos. No bivaque lusitano, apodera-se dos homens um grande cansaço físico e psicológico. Os soldados dor­mem, quando podem dormir, junto às faces do quadrado, com as espingardas à mão e as cartucheiras postas. Os nervos estão em franja, e o relatório de Aguiar reflecte a frustração que vai dominando toda a gente (...)
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Para mal dos Portugueses, começa a emergir no acampamento a verdadeira per­sonalidade do governador Aguiar, o capitão de engenharia a quem se resolveu confiar a mais espinhosa das missões até agora levadas a cabo no Sul de Angola. Os veteranos de África presentes no Pembe suportam mal este plácido homem de se­cretária e papeladas, de feições finas e mansas, que um farto bigode grisalho não consegue endurecer. Paralisado junto ao Cunene, ele vai dando largas aos seus ta­lentos de organizador, regendo com eficiência mecânica a vida da expedição. O seu temperamento metódico realiza-se e esgota-se em ordens de serviço que tudo pare­cem contemplar e em que os imprevistos não têm lugar.
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A 21, terceiro dia de imobilidade no vau, fica a saber-se que, na manhã seguinte, o café, o quinino e a aguardente serão distribuídos às cinco horas, após o que haverá banho para os sol­dados numa barraca montada perto do rio. Quanto ao resto - e o resto é a insusten­tável situação de dois mil homens asfixiados pelo inimigo -, sucedem-se as ambi­guidades e as hesitações. Aguiar parece cada vez mais deslocado no ambiente forte das tropas em campanha. Dois meses antes, num dos seus resmungos de ca­serna, já Gomes da Costa profetizara: Enfim, isto será o que Deus quiser, mas palpita-me campanha "engenheirática", com muito rolo de arame telegráfico, muita ferra­menta e muita porrada.
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Agora, o capitão vai mais longe: Eu não per­cebo que se desse o comando duma coluna destas a um homem sem precedentes que justifi­quem a concessão do mando. Gomes da Costa espelha o sentimento que grassa en­tre os veteranos. Eles têm a impressão de que o comandante perdeu a ca­pacidade de reagir e se limita a seguir a reboque dos acontecimentos. De um instan­te para o outro, todas as informações são postas em causa - sobre o poderio do inimigo, so­bre os itinerários, sobre os pontos de água, sobre o próprio objectivo principal da expedição. Afiguram-se inúteis, ou esquecidos, os resultados da espi­onagem tão diligentemente realizada nas terras dos Ambós. O comando português abre fissuras à medida que se vai deteriorando o relacionamento entre o governa­dor e os seus oficiais.
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(...) Na noite de 21 para 22, à entrada do quarto dia de imobilização do quadrado, um grave incidente provoca a deserção da quinta parte dos efectivos portugueses. Perto das onze horas, iludidas pelas sombras e pelos rumores do mato, as sentine­las disparam de súbito sobre inimigos imaginários. O capitão de artilharia Luís Pinto de Almeida, que dorme ao pé da trincheira, desperta estremunhado. Agarra-se de um salto a um canhão Hotchkiss e varre as trevas com um fogo que se reve­la­rá mortífero, mas não para os Cuamatos: findo o burburinho, ficam esti­rados no capim três mortos e um número indeterminado de feridos entre os auxilia­res chim­bas, além de um ferido europeu do Batalhão Disciplinar.
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No dia seguinte, atemori­zados e cheios de indignação, quatrocentos chimbas decidem quebrar a ali­ança. Devolvem as armas de fogo com que haviam sido dotados pelos Portugueses e abandonam o acampamento, vadeando, em massa, o Cunene. Apesar da delica­deza da situação, não se conhecem reacções significativas do governador Aguiar, que, como em breve se verá, parece não ter extraído as convenientes ilações do episó­dio.
A 22, dia da deserção dos Chimbas, todos sentem no quadrado que as coisas estão prestes a atingir as fronteiras do intolerável. Reage-se cada vez pior ao infin­dável tiroteio de desgaste, às terríveis variações de temperatura entre o dia e a noite, às compridas madrugadas de vigília, ao sono, à doença. Há gente abrasada pelas febres palustres ou a esvair-se em sangue por acção das disenterias. Às onze da manhã, num rasgo temerário, surge no alto da duna um lenga a cavalo, seguido de vários guerreiros. Furiosos, os Portugueses alvejam-nos com as peças de arti­lharia, até que os vêem desaparecer para lá das areias.
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Aguiar sabe que tem de ar­rancar-se à inacção. Pondera, contudo, que não dispõe ainda de condições para se lançar através das florestas em direcção a Mogogo. Hesita e volta a hesitar, diante do mistério daquele inimigo que se furta por sistema ao embate frontal. Ordena en­tão que se efectue no dia seguinte, 23, um reconhecimento ofensivo das imediações. Pretende algum alívio para o quadrado, libertando-o da teia que o aprisiona, e es­pera poder abrir caminhos para os carros da coluna. Deseja também que se obte­nham informações fiáveis sobre as posições do inimigo e que se concretize uma se­vera demonstração do poder lusitano. Recomenda empenhadamente a Gomes da Costa, a quem confia o comando da missão, que deite fogo aos eumbos da área e que retire o máximo de efeito moral do uso da artilharia. Costa terá à disposição mais de quatrocentos homens de infantaria e cavalaria, apoiados por uma peça Hotchkiss. No seu diário, ele comenta: Quando querem alguma coisa, vêm buscar os homens de Mouzinho..
Às cinco da tarde desse dia de viragem, dá finalmente entrada no Pembe o te­nen­te João Roby, acompanhado pelo doutor Silveira. Uma lufada de jovialidade percorre o acampamento. Aureolado pela fama que granjeou nos combates da costa oriental, Roby chega vibrante de entusiasmo, coberto de condeco­rações e de uma grossa camada de poeira. Não cabe em si de satisfação quando toma conheci­mento da presença de uma secção de artilheiros da Armada: Ó doutor, temos gente nossa!, grita ele para Silveira. São especialmente festejados os com­panheiros de Moçambique, como Gomes da Costa, a quem Roby anuncia alegremente que alcan­çará um record com esta entrada em campanha. Nomeado sub-chefe do estado-maior da coluna, entrega-se logo à impulsividade dos gestos magnânimos: topando com um grumete amarrado a uma peça por ter cometi­do uma falta disciplinar, não sossega enquanto não obtém o seu perdão. Segundo ele, todos os homens deve­rão estar livres e prontos para o dia de consa­gração que se avizinha. Sem surpresa, acaba nomeado adjunto do comando para o reconhecimento ofensivo do dia ime­dia­to. O alferes Pacheco Leão seguirá também incorporado no destacamento como comandante dos auxiliares humbes.
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Gomes da Costa sai do quadrado, com os seus quatrocentos homens, perto das sete da manhã de 23. Progride para sueste, mais ou menos paralelamente ao Cunene, até mergulhar na mata de Mucohimo. Ao fim de cinquenta e cinco minutos de marcha sem pôr a vista em cima de um único inimigo, o destacamento desem­boca, a cerca de três quilómetros do acampamento, numa espaçosa clareira, que os documentos portugueses doravante identificarão como Chana A. No extremo norte desta clarei­ra ouve-se um disparo isolado. Os invasores assumem posições defen­sivas, mas o inimigo não volta a manifestar-se.
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Inflectindo para a esquerda, a colu­na atravessa durante uma hora um mato de espinheiros e mutiatis, até chegar, dois quilómetros adiante, a uma segunda clareira, bastante maior do que a primeira, que será chama­da Chana B. Neste local, situado nas proximidades de Chambene e Nandua, a cerca de cinco quilómetros do quadrado, avistam-se alguns eumbos e, enfim, grupos es­parsos de cuamatos, que efectuam algumas des­cargas de armas de fogo. Gomes da Costa faz avançar um pelotão da Companhia Europeia e outro do Batalhão Disciplinar, que carregam de baioneta arma­da e sol­tando "hurrahs". Os Cuamatos suspendem o fogo e recolhem-se veloz­mente à protecção do mato.
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Nos eumbos abandonados, onde dezenas de cubatas não tardam a ser devoradas pelas chamas ateadas pelos assaltantes, estes descobrem muita cri­ação de porcos e gali­nhas, bem como cestas enormes a transbordarem de manti­men­tos. Assim que o fogo alcança o interior das cubatas, ouve-se o estampido de explosões surdas: são gran­des quantidades de munições armazenadas que vão pelos ares. Gomes da Costa es­quadrinha a mata em diversos sentidos, cavalga por cam­pos semeados de massango e massambala, alveja com tiros de artilharia povo­ados pressentidos na distância. Mas o que surge diante dos ziguezagues do desta­camento é uma infindável extensão de terras enigmaticamente desertas. Nem um só cuamato se deixa a partir de então avistar dentro ou fora dos emaranha­dos do arvoredo. Cinco longas horas depois da partida, por volta do meio-dia, Costa sai da mata, a sul do morro do Imbondeiro, e reentra com os ho­mens cansa­dos no quadrado.
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O comandante Aguiar inscreverá no relatório uma síntese satisfeita da opera­ção: Foi incontestavelmente um reconhecimento com êxito. À luz crua dos factos, torna-se difícil achar cabimento para tal juízo, porque, ao fim e ao cabo, ne­nhum dos objectivos foi atingido. O mais grave é que o governador continua a des­co­nhecer as intenções e o potencial do inimigo. Há, no entanto, um sinal, uma pista sobre o que poderá esperar-se de Igura. Com efeito, para um comando mais clari­vidente, o rebentamento das munições nos eumbos e a descoberta de grandes reser­vas de víveres constituiriam indícios evidentes de que a região se fora trans­for­mando, ao longo dos meses que precederam a invasão, na base logística de um po­deroso exército. Sendo assim, teria de aceitar-se a hipótese de que os Cuamatos estavam dispostos a erguer a primeira e mais firme barreira da resistên­cia nas cer­canias do rio Cunene, a prudente distância de Mogogo. Contudo, do lado português, ninguém parece ter tomado consciência dessa eventualidade.
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A partir da tarde de 23 de Setembro e durante todo o dia 24 abate-se em torno do acampamento lusitano um pesado manto de sossego e silêncio. Para muitos é uma bonança angustiante, de mau presságio. Para Aguiar trata-se apenas da natural contenção de um inimigo metido na ordem pelo reconhecimento ofensivo.
Dir-se-ia que tudo passou a correr de feição a este homem meticuloso.
O quadrado, que ele encara como um gigantesco quartel ao ar livre, é o seu reino, onde tudo acontece com a monótona uniformidade e a fria exactidão dos dispositivos militares.
Há sempre um oficial de prevenção. Toma-se banho, a cavalaria bivaca em corda de piquete, as alvoradas são às três da madrugada e as tropas, despertadas pelos ofi­ciais de ronda, formam armadas nas faces do quadrado.
A intendência funciona a contento e as refeições satisfazem.
Tabelas de rações diárias regulam, com a mi­núcia do grama, a alimentação da coluna. Numa delas atribuem-se a cada soldado seiscentos e cinquenta gramas de carne, duzentos e setenta de massa, vinte e cinco de toucinho e trezentos de bolacha. Tudo regado por quatro decilitros de vinho.
Os auxiliares humbes recebem individualmente um quilo de farinha e dez gramas de sal para o pirão, a que adicionam as sobras da carne distribuída às tropas regula­res. Para os oficiais existem hipóteses de rancho melhorado: dispõe-se de latas de carne de vitela e carneiro, salsichas, marmelada, manteiga, cacau. Há botijas de genebra, garrafas de conhaque, embalagens de excelente tabaco.
A 24 de Setembro, sexto dia de operações, Aguiar rejubila no seu quadrado impecável, ancorado à margem do Cunene. Gomes da Costa, às voltas com o diário, indigna-se e torna a resmungar: Não se faz nada. Chefe sem iniciativa, sem valor (...). Estamos aqui parados a fazer "raids" quando deveríamos já estar perto de Mogogo.
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(...) No vau do Pembe, Aguiar espera. Mas o que espera, realmente, Aguiar?
É di­fícil penetrar nas intenções mais ocultas deste homem de semblante astucioso e olhos miudinhos, que se refugia invariavelmente no formulário ma­quinal dos regu­lamentos militares. Hora após hora, ele espera. (...) É lícito pensar-se que o comandante se acha afinal à espreita de um qualquer pretexto para a retirada. Ou, então, de uma miraculosa sus­pensão das operações, isto é, de que algum dos superiores se lembre de colo­car um fim àquele tormento. (...) Gomes da Costa desconfia há muito das intenções do gover­nador: Creio mesmo que o comando está com ideias de dar isto por terminado. Se retirarmos, não fico no Humbe; coloquem-me onde quiserem, mas não estou para maçadas tolas e inúteis.
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Sejam esses ou não os seus propósitos e esperanças, o certo é que Aguiar também sente que não pode expor-se, perante a hierarquia, a uma inactivi­dade ab­soluta. Deste modo, determina nesse 24 de Setembro que tenha lugar na ma­nhã se­guinte um novo reconhecimento às terras do Cuamato Pequeno. Disponibiliza para isso sete pelo­tões de infantaria - retirados do contingente do Batalhão Disciplinar, da Companhia Europeia e das 6.ª e 16.ª Companhias Indígenas -, além de três pelo­tões do Esquadrão de Dragões, dos quais um seguirá apeado. O desta­camento con­tará ainda com uma secção da Bateria Mista de Artilharia, dotada de duas peças, e um grupo de auxiliares humbes.
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Sem contar com os auxiliares, trata-se de uma res­peitável força de quatrocentos e noventa e nove homens, dos quais dezano­ve são oficiais. O chefe da operação - que terá como adjuntos o tenente João Roby e o te­nen­te de cavalaria Francisco Resende - é uma surpresa tirada da manga por Aguiar: nem mais nem menos do que o capitão de artilharia Luís Pinto de Almeida. Com esta opção, o governador comete outro dos seus erros graves. Pinto de Almeida, re­corde-se, foi a figura central do incidente da noite de 21 para 22, que originou a deserção dos Chimbas. Nesses segundos dramáticos, o capitão eviden­ciara comple­ta ausência da serenidade requerida pelos lances difíceis. Acresce que ele é um oficial de artilharia, desconhecedor da táctica de armas diferentes da sua. Ora, o reconhecimento vai realizar-se com esmagadora preponderância de tropas de in­fantaria, o que aconselharia a nomeação de um oficial desta arma. Mas os da­dos estão lançados e não serão substituídos. As tropas sairão às cinco e meia da manhã.
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(...) O tempo desliza célere até às cinco e trinta da manhã de 25 de Setembro, um domingo, altura em que o destacamento de Pinto de Almeida se põe em marcha para o reconhecimento.
Os homens tomaram café e quinino e vão pre­venidos com refeições frias. Distribuiu-se a cada um o municiamento completo: cento e vinte cartuchos para os soldados de infantaria, sessenta para os de cavala­ria e artilharia. Percorrem devagar os cerca de mil metros que os separam da orla do arvoredo, decalcando o rasto do reconhecimento de Gomes da Costa. Dispõem-se em coluna dupla, prontos a passarem à formação de quadrado em caso de amea­ça grave. Cem metros adiante do grosso da força vão perto de três dezenas de ca­va­leiros do alferes Vendeirinho, que constituem a guarda avançada.
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As tropas in­ternam-se na mata. À frente e nos flancos, os auxiliares humbes de Pacheco Leão movem-se sorrateiros por entre as árvores e o mato rasteiro, espio­lhando os segre­dos da floresta. Penetram em zonas amortalhadas num silêncio de túmulo, apenas ferido pelo resfolegar dos cavalos e pelos sons abafados das pas­sadas e dos mur­múrios dos soldados. Dos esconsos do arvoredo escapa-se por ve­zes a sugestão de uma presença, um sobressalto, uma quase imperceptível vibração. Os Humbes imobilizam-se e põem-se à escuta, curvados, tensos, de narinas fremen­tes e olhos esgazeados, perscrutando as imediações: mas é somente uma impressão, um estre­mecer de folhagens, um fortuito jogo de sombras, uma espécie de ilusório sussurro.
Não há vestígios do inimigo, e o destacamento prossegue o avanço. Às seis e meia, com uma hora de marcha e perto de três quilómetros percorridos, atin­ge uma cla­reira, a Chana A. Pinto de Almeida faz um pequeno alto para descanso. Ao redor dos invasores, na perfumada e branda manhã africana, a quietude é absoluta, a ponto de poder pensar-se que o inimigo resolveu finalmente debandar diante da ofensiva portuguesa.
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Este sossego não passa, todavia, de uma cortina de ilusões. A verdade é que a mata fervilha, agora como no princípio, de guerreiros cuamatos prontos para o combate.
Entre os lengas, o dia 24 foi um precioso espaço de discussões da estra­tégia a perfilhar. O reconhecimento de Gomes da Costa constituiu para eles o sinal de que os Portugueses tencionam enfim arrancar-se à sua surpreendente inacção. Deduzem que o itinerário escolhido para a progressão decisiva coincidirá com os trilhos explorados naquela ocasião. Dissimulam então os seus espiões na mata fronteira ao quadrado lusitano e ao correr das pistas do presumível avanço inimigo. Dirigem depois as etangas para as ruínas enegrecidas das povoações arra­sadas nas proximidades da Chana B, mais ou menos a uma légua do rio.
Neste lo­cal propício a emboscadas - uma extensa clareira cercada de arvoredos e polvi­lhada de arbus­tos e morros de salalé -, aprestam-se para colocar em campo a sua táctica de com­bate favorita, o fundo-de-saco. Fazem com que os homens se des­dobrem em torno da clareira, escondidos entre as árvores, deixando apenas livre, como a boca de uma armadilha, a entrada correspondente ao trilho que vem da Chana A. À frente postam-se os atiradores, e, à retaguarda, os homens munidos de armas brancas, re­serva­dos para o choque de um eventual corpo-a-corpo.
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Ao romper do dia 25, mensageiros velozes trazem a notícia há muito aguardada: os Portugueses deixaram finalmente o acampamento e avançam para o interior. Mas há uma particularidade estranha. Em vez de um golpe avassalador com todo o exército, a coberto das bocas de fogo guardadas junto do rio, eles deci­dem-se por uma surtida limitada, com meio milhar de homens e duas peças, pare­cendo conten­tar-se com a repetição do reconhecimento anterior. Os Cuamatos ale­gram-se com este providencial fraccionamento. Daí em diante, sem que de tal lo­grem aperceber-se, os Portugueses têm todos os gestos medidos por espiões que se confundem prodigiosamente com as sombras e os acidentes da mata, como se fizes­sem parte da paisagem. É assim que os lengas tomam conhecimento de que os seus vaticínios se confirmam: com efeito, passo a passo, a coluna portuguesa encami­nha-se inexora­velmente para a Chana B, agora transformada, em termos militares, numa vastís­sima zona de morte.
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Após um repouso ligeiro, os invasores retomam a progressão, inflectindo lenta­mente para nordeste a partir da Chana A. A mata apresenta-se cada vez mais cerra­da, e é com dificuldade que os homens conservam a formação. A dado instante, o tenente Roby, o capitão Morais e uma ordenança, todos a cavalo, adiantam-se à guarda avançada do alferes Vendeirinho e desembocam, isolados, na Chana B. Os relógios marcam sete horas e trinta minutos da manhã. A cerca de trezentos metros, de um e de outro lado da clareira, avistam-se as cubatas assinaladas pelo reconhe­cimento de Gomes da Costa.
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Os cavaleiros percebem de súbito um movimento brusco e fugidio nas imediações. São dois guerreiros cuamatos, surpreendidos a descoberto pela inesperada iniciativa dos inimigos. Deitando a galope, os cavalei­ros gritam-lhes que não fujam. Os negros fazem ouvidos de mercador e correm a bom correr, procurando esgueirar-se para a protecção da mata. Um deles desapa­rece em segundos, mas o outro não tarda a ver-se ultrapassado pelo capitão Morais. Quando este sustém a carreira e volta o cavalo na sua direcção, o guer­reiro apruma-se, gigantesco e desafiador, diante do português, e, de za­gaia em pu­nho, dispõe-se a vender cara a vida. No momento em que Morais carrega sobre ele, o cuamato esquiva-se e despede com violência a zagaia. Alcançado em cheio, um pouco abaixo do mamilo esquerdo, o capitão dobra-se sobre a mon­tada. O guer­reiro salta, procura o corpo-a-corpo. Morais, que por milagre não foi colhido mortalmente, atinge-o na cabeça com a espada. O africano cambaleia, mas torna à carga, aferrando-se com desespero à perna direita do adver­sário para o derrubar do cavalo. Morais dispara o revólver Abbadie sem resulta­dos visíveis. Acorre João Roby, que logo trata de acometer o cuamato à espadei­rada. Este defende-se e fere-o ligeiramente na mão. Vale então a ordenança, o sol­dado número 21 do Esquadrão de Dragões, que prostra o corajoso adversário com um tiro de espin­garda.
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Num relance horrorizado, os três cavaleiros dão-se enfim conta da terrível ameaça que se acoita no arvoredo circundante, de onde se eleva, medonho, um som rouco de buzinas e de clamores de guerra. Roby, Morais e a or­denança voltam para trás e vão ao encontro do destacamento, que acaba de penetrar na chana. Quando ecoam no descampado as primeiras descargas dos Cuamatos, Pinto de Almeida manda tocar o clarim para que se forme o quadrado. Na face da frente, orientada para nordeste, alinham dois pelotões do contingente do Batalhão Disciplinar. Nos ângulos asses­tam-se as duas peças de artilharia. A face da esquerda é defendida pela 6ª Companhia Indígena e a da direita pela 16.ª. À re­taguarda, virados para o trilho que acabam de percorrer, ficam os soldados da Companhia Europeia de Infantaria e o pelotão de dragões apeados.
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O quadrado, dentro do qual se abriga­ram já os pelo­tões de dragões montados e os auxiliares, é, no meio do capim ama­relecido da chana, uma ilha de corações desenfreados.
Os soldados, de mãos en­clavinhadas nas armas, espreitam taciturnos a floresta, a cento e cinquenta metros de distância. Apesar de iludido o efeito da surpresa, a posição dos guerreiros de Igura é invejá­vel. Miram dos seus esconderijos, quase invisí­veis, as precipitadas manobras dos invasores. Os lengas estão satisfeitos: têm os Portugueses encurrala­dos, bem no centro da zona de morte para que se deixaram arrastar. Abrigados por detrás dos troncos das árvores e dos morros de salalé, os Cuamatos despejam so­bre o quadra­do uma mortífera barreira de fogo. Alguns tre­pam às copas das árvo­res, de onde beneficiam de um magnífico campo de visão. Os atiradores que esgo­tam as muni­ções são logo substituídos pelos companheiros das segundas linhas, ha­vendo, por­tanto, um corrupio contínuo, que mantém viva e sem afrouxamentos a ca­dência dos disparos.
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O comandante Pinto de Almeida ordena que as faces atacadas ripostem com fogo disciplinado, por descargas. Ao mesmo tempo entra em acção a artilharia. Mas não é possível verificar o efeito dos disparos sobre um opositor que perma­nece obstinadamente agarrado aos abrigos.
Apesar de as perdas portuguesas come­çarem a avolumar-se, Pinto de Almeida deixa-se tolher por estranha letargia. No entanto, Aguiar dispusera assisada­mente nas suas ordens de operações que o qua­drado apenas seria assumido como uma formação preparatória do combate. Com isso pretendia ele significar que, em caso de hostilidades que obri­gassem a tal re­curso, deveria o responsável esclarecer rapidamente a situação, após o que resol­veria sobre a manobra a executar - de desenvolvimento, de avanço ou de recuo do quadrado.
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Na Chana B, nesse memorável 25 de Setembro, tais ins­truções estão a ser tragicamente ignoradas.
O comandante mantém-se sem reacção eficaz, embora seja cada vez mais claro que o destacamento se acha preso numa ratoeira mortal. Há um momento, uma pequena fracção de tempo, quando a disciplina ainda impera e as munições abundam, em que teria sido possí­vel - pelo menos - tentar escapar, com ordem, da clareira da morte. Porém, Pinto de Almeida parece confundido pela violência do ataque e pela sagacidade de um adversário que, sempre escondido, lhe vai dizimando os homens, expostos a pé firme e de peito descoberto às balas que chovem do arvoredo.
Decorrem os minutos - cinco, dez, quinze - e está já a ul­trapassar-se o ponto sem retorno. O quadrado avança ou recua? Não há resposta do comandante para esta pergunta vital. É pro­vável que ele continue psicologicamente abalado pelos acontecimentos da noite de 21 de Setembro, como é de presumir-se que, por motivo das culpas que arrasta consigo, só muito dificilmente poderia conformar-se com a ideia de uma retirada. A demora de Pinto de Almeida na Chana B possui todos os cambiantes de um lavar de face suicida.
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Os nervos apode­ram-se dos soldados, obrigados a manterem-se di­reitos e impávidos naquele mata­douro, percebendo o impacte sinistro dos projéc­teis nos corpos desprotegidos dos companheiros e o baque surdo dos que tombam no solo requeimado da chana. Há muito que se perdeu a disciplina de fogo. O tiro­teio do quadrado é agora vivíssimo, o ritmo do consumo das munições torna-se preocupante. Os oficiais tentam repor a cadência das descargas, e Pinto de Almeida chega mesmo a ordenar o toque de cessar fogo. Porém, ao fim de quase meia hora deste combate desigual, não há nada que possa ter mão no tremendo im­pulso de sobrevivência.
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Principiam os rasgos es­pontâneos. À voz de um cabo - Rapazes, vamos dar uma carga! -, os soldados do Batalhão Disciplinar abando­nam a face do quadrado e precipitam-se de baionetas em riste, soltando clamores selvagens, em direcção à floresta. Contagiados pelo gesto, alguns soldados da 16.ª Companhia Indígena seguem na peugada dos compa­nheiros e enfileiram à sua direi­ta na borda do arvoredo. Os Cuamatos recuam, de árvore em árvore, diante do inesperado contra-ataque. Os soldados vão sustentando com descargas a posição conquistada.
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Entretanto, os pelotões de cavalaria saem também do quadrado numa carga impetuosa. Levam à frente o seu comandante, o tenente Adolfo Ferreira, um dos incluídos à última hora no destacamento. Não é uma iniciativa feliz naquele terreno eriçado de espinheiros, de morros de salalé e de arvoredos de ra­marias baixas. Muitos cavaleiros acabam por ver-se privados das montadas e, para piorar as coisas, o tenente Adolfo Ferreira tomba, ferido de morte, durante a carga.
Estarrecidos, os cavaleiros retornam ao quadrado, que exibe perigosamente escan­carada a face da frente e parte da face da direita. Os Disciplinares e os soldados africanos da 16.ª recebem então ordem para deixarem a beira da mata e regressarem ao quadrado, fechando de novo a formação. Quando os homens obedecem, a vaga de cuamatos reflui no mesmo balanço e reocupa com presteza as posições iniciais. O quadrado, mais ou menos recomposto, volta a transformar-se num matadouro.
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Pouco depois das oito horas da manhã, ao cabo de trinta minutos de luta, as li­nhas portuguesas denotam assustadores indícios de desagregação. Do lado dos Disciplinares, na face da frente, informa-se que as munições estão a chegar ao fim. A artilharia emudece bruscamente, após cada uma das peças ter desfechado vinte e quatro tiros sobre a mata fronteira.
Os Cuamatos aproveitam para se aproximarem a coberto dos acidentes naturais e são detectados guerreiros a cinquenta metros do quadrado. Ao mesmo tempo, os lengas procuram fechar o cerco e fazem com que se inicie o ataque à face da retaguarda.
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Começa então a emergir na batalha o vulto do tenente Carlos da Luz Rodrigues, um lisboeta da freguesia do Socorro. Comandando o seu pelotão da Companhia Europeia de Infantaria, e auxiliado pelo pelotão de dragões apeados do alferes Santos Nunes, Luz Rodrigues reage ao as­sal­to com um fogo regular, que sustém o ímpeto do inimigo. Das outras faces conti­nuam porém a elevar-se gritos angustiados: Estamos todos perdidos, já não há pólvora! Quando um cabo dos Disciplinares aparece numa corre­ria desa­balada em busca de munições, Luz Rodrigues faz com que lhe encham de cartuchos as copas de dois chapéus. Depois, com os homens de joelhos em terra, prossegue friamente as descargas na direcção da mata.
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E Pinto de Almeida, o que é feito do comandante do destacamento? Ele vagueia pelo interior do quadrado, perdido num distanciamento de sonâmbulo, contem­plando com uma fleuma arrepiante a inexorável realização do destino. À sua volta desenha-se um espectáculo pavoroso. Com excepção da retaguarda, as linhas por­tuguesas oscilam, retrocedem, abrem brechas repentinas. Os homens clamam que vão ficar ali todos. O doutor Silveira, o amigo de João Roby, rodeado de sangue e de brados de dor, informa que já não há onde meter tantos feridos. O quadro de ofi­ciais reduz-se a olhos vistos. O capitão Morais está inutilizado, o tenente Adolfo Ferreira morreu, o tenente António da Trindade tem uma perna fracturada, o tenente José Maria Ferreira, dos Disciplinares, tombou morto no início da emboscada, e o alferes Oliveira, da 16.ª, jaz de borco com um orifício na nuca de onde jorra sangue abundante.
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João Roby anda numa canseira, de um lado para o outro, adivinhando a iminência do desastre total. Adverte os soldados: Olhem o quadrado! Olhem as peças! Quando o doutor Silveira lhe implora que convença o comandante a retirar, responde: Eu já lhe disse para retirarmos, mas ele não me disse nada. Não sei o que ele quer fazer. Roby exaspera-se, interpela outra vez Pinto de Almeida: Capitão, é melhor retirarmos, quando não ficamos aqui todos!
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O comandante, com a sua calma de pesadelo, replica: Ainda há muita pólvora. E, depois, com idênticos vagares: Isto vai mesmo à baioneta. Todavia, quando os Cuamatos in­tensificam o assédio, ele parece despertar abruptamente para a realidade: Isto já não é quadrado nem é nada. Roby, no auge da impaciência e do desalento, pres­sentindo a voz final dos lengas, diz nessa altura o impensável ao seu superior hie­rárquico: Se não sabe comandar, entregue-me o comando, capitão! Pinto de Almeida não dá resposta, lança em torno um olhar parado e desiludido, só agora parece ter adquirido consciência de que, nestas circunstâncias, a vitória, o feito esplendo­roso de que carece para se reabilitar, é impossível. Num impulso - são oito e um quarto da manhã e o combate dura há quarenta e cinco minutos -, deter­mina finalmente: Ó rapazes, vamos a retirar, venham fazendo sempre fogo e fa­zendo barulho.
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Soa um toque de clarim, a ordem propaga-se, o quadrado move-se na di­recção da flo­resta envolvente do trilho que conduz à Chana A.
Apesar de a forma­ção se apresen­tar meio desalinhada, há um arremedo de disciplina no início do movimento. Os Portugueses trazem consigo os seus mortos e feridos, e arrastam também, com o auxílio de muares, as peças de artilharia.
O alferes Vendeirinho ca­valga com os dragões e, apoiado pelos auxiliares humbes de Pacheco Leão, tenta romper cami­nho a tiro para a evacuação das forças. Assim que as munições se es­gotam, os ca­valeiros começam a fazer uso das armas brancas. O tenente Luz Rodrigues desloca os seus homens para a face oposta, agora transformada em reta­guarda, e procura proteger a retirada. O destacamento deixa com lentidão a Chana B e encaminha-se de novo para as profundezas da mata de Mucohimo.
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Os lengas esperaram pacientemente por este instante. Levam contabilizadas as baixas dos invasores, aperceberam-se da desorientação que lavra entre eles, estão seguros de que muitos não dispõem já de um único cartucho. Logo que o quadrado inicia o recuo, ordenam às etangas da última linha que avancem.
De um salto, com uma gritaria ensurdecedora, centenas de guerreiros munidos de armamento tradici­onal arrojam-se para diante, como uma vaga colossal e irreprimível, atropelando os companheiros atiradores, acercando-se do quadrado para cerrarem um amplexo de morte sobre os soldados. Um oficial português registou o momento do tremendo embate à entrada do arvoredo:
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O inimigo viu bem que não podíamos continuar a resistir por mais tempo e, temendo que viessem reforços em nosso auxílio, precipitou-se em massa sobre nós, travando-se um combate corpo-a-corpo, à zagaia, à faca, a machadinho, ao porrinho, defendendo-se os nossos à espada, à baioneta, à pistola, fazendo das espingardas achas de armas (...). Houve rasgos de heroicidade e de lou­cura!
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A partir daqui, esboroa-se o simulacro de disciplina que ainda sustentava o re­cuo do destacamento.
Tombam mais oficiais, as unidades fraccionam-se em peque­nos grupos descomandados, há homens isolados e sem armas a correrem louca­mente pela espessura, buscando, aflitos, pistas que levem ao acampamento do Cunene. Mas a mata de Mucohimo transformou-se para os invasores num lugar mau e mortífero, povoado de gigantescos e audaciosos guerreiros cuamatos, que surgem de zagaias em punho, semelhantes a fantasmas, de esconderijos insuspeita­dos.
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Para os Portugueses, a Chana B foi somente a antecâmara do inferno, o inferno em que se debatem agora, consumindo as últimas energias e munições em ferozes lutas in­dividuais, procurando salvar as suas vidas. Há vultos e ameaças de morte por de­trás de cada tronco de árvore e de cada maciço de espinheiros, em todos os covais e tufos de capim. As baixas portuguesas elevam-se a números aterradores, há cadá­veres trucidados por todo o lado.
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E Pinto de Almeida, onde está Pinto de Almeida? O comandante paga enfim o seu preço. A sorte acaba por mostrar-se mi­sericordio­sa para com este homem atormentado, provavelmente já sem hipóteses de uma so­brevivência digna: uma bala entra-lhe pela boca, sai-lhe pela nuca, o capi­tão re­pousa agora, liberto das suas culpas e remorsos, no chão acolhedor da mata.
João Roby, campeão de tantas batalhas, presencia abismado, do cimo da montada, o as­sombroso desastre. Num arranco, guia o cavalo para junto de um bando de sol­da­dos que retrocedem, disparando ainda as suas espingardas diante das vagas ini­mi­gas, e tenta com um derradeiro gesto alterar os desígnios da fortuna. Encarando a mole imensa dos Cuamatos, grita para os soldados: Rapazes, não me abandonem!
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Nesse instante decisivo está tal como ficou no seu auto-retrato, o mesmo ser nodo­so, agudo, todo em arestas, nunca seguindo o trilho da estrada comum, sempre aos saltos pelos valados, aos ziguezagues pelos carreiros, tendo teimas invencí­veis, energias de herói, resistências de mártir. Mas Roby, que vê crescer a massa de guerreiros inimigos, sente afinal que não é humano pedir o sa­crifício maior àquele punhado de soldados sem moral, já só impelidos pelo ins­tinto de conserva­ção, que o fitam de rostos compungidos. Então, como num adeus, diz-lhes: Quem puder retirar, retire.
E, metendo esporas ao cavalo, galopa solitá­rio em direcção ao inimigo, de espada desembainhada e revólver em punho. Mais do que uma luta breve e desigual, vai tratar-se de uma verdadeira auto-imolação, que os deuses es­colheram para despedida do arcanjo da guerra que deitaram a este mundo. Roby engolfa-se no mar de guerreiros negros que disparam sobre ele, tomba do cavalo sob um refulgir brusco de lâminas sem clemência. Alto, magro, esgalgado, tri­gueiro, o herói travou o seu último combate.(...).
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(...) No acampamento português do Pembe, escuta-se desde as sete e trinta da ma­nhã o fragor do combate. São perfeitamente audíveis as descargas iniciais, espa­çadas pela disciplina, e o som cavo dos disparos de artilharia. A passagem a um ritmo de fogo vivo, intensíssimo, suscita alguma inquietação.
A partir de dado mo­mento, porém, o tiroteio abranda, tornando a ouvir-se, cerca das oito e meia, umas des­cargas mais espaçadas e regulares, cujo som parecia vir de pontos sucessi­va­mente mais próximos do acampamento. Isto fez supor a João Aguiar e aos seus comandados que o destacamento de Pinto de Almeida, entrando em contacto com o inimigo, iniciava uma retirada em boa ordem, aproximando-se, com segurança, do rio. Essa foi apenas mais uma das ilusões desse domingo maldito para os invaso­res.
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Há uma explicação objectiva para o equívoco que se instalou no acampamento.
Com efeito, no meio do pandemónio de sangrentas correrias que revolve a mata de Mucohimo, subsiste milagrosamente entre os Portugueses um pequeno núcleo de ordem, frieza e coragem: o tenente Carlos da Luz Rodrigues, da Companhia Europeia, teve artes de congregar à sua volta umas poucas dezenas de homens e, valendo-se das munições de que ainda dispõe, ergue diante das investidas dos Cuamatos uma barreira móvel e mortífera.
Acompanhado pelo alferes de cavalaria Santos Nunes, dos dragões apeados, e pelo alferes de artilharia Joaquim Rodrigues, o tenente mantém o grupo coeso e calmo, retrocedendo pelo trilho que conduz à Chana A, desfechando sobre o inimigo um fogo controlado.
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É o som regu­lar destas descargas que leva a tranquilidade e o optimismo ao acampamento lusi­tano. Luz Rodrigues, impressionante de autodomínio e de capacidade de comando, ordena aos soldados que não se dispersem, que poupem munições, que só façam fogo pela certa. De tronco em tronco, de espinheiro em espinheiro, os homens recu­am vagarosamente para o acampamento. Mil metros, dois mil metros, a Chana A é ultrapassada e o minúsculo agrupamento embrenha-se de novo no arvoredo, acer­cando-se do Cunene e da salvação.
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À volta deste corpo de resistentes, a mata continua a enlear em armadilhas de morte centenas de fugitivos desgarrados, exaustos e, em grande parte, já desarma­dos, que procuram esquivar-se à fúria de bandos de cuamatos ávidos de luta e de vingança. Muitos dos soldados tentam encurtar os caminhos da fuga, enfiando por atalhos em direcção ao rio. A maior parte vai meter-se na boca do lobo.
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Sucumbem mais oficiais - os tenentes de cavalaria Francisco Resende e Alberto Temudo, o te­nente Matias Nunes e o alferes Albino Chalot, de infantaria.
Há cenas lancinantes. O alferes Correia da Silva, da 6.ª Companhia, e o doutor Silveira, que vêm feridos às costas de soldados, são descobertos por guerreiros cuamatos e de imediato chacinados. O soldado Ricardo Fernandes, que transportava o doutor, fica esten­dido, incólume, sob o cadáver deste, de onde só sairá ao cair da noite para uma fuga sobressaltada até ao Humbe.
O tenente António da Trindade e o capitão Morais, conduzidos em macas, numa correria desenfreada, por enfermeiros espa­voridos, são repentinamente depositados no chão e abandonados à sua sorte, quan­do uma onda de guerreiros se arremessa sobre eles. Trindade, indefeso, com os movimentos impedidos pela perna fracturada, é liquidado sem demora. Morais, por quem as asas da morte roçaram várias vezes sem sucesso nesse dia, tem melhor sina: deparando com uma montada sem cavaleiro, que deambula espantada pelo teatro da carnificina, apodera-se dela e logra escapulir-se a galope para fora do al­cance dos perse­guidores.
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Vêem-se outros cavaleiros na floresta, esgueirando-se por entre o arvoredo. Dão origem a episódios de excruciante agonia, quando fugiti­vos desvai­rados se lhes agarram às pernas, implorando-lhes que os não deixem ali. Mas os cavaleiros seguem adiante, porque, como escreverá Gomes da Costa sobre esse dia terrível, a besta humana, espicaçada pelo instinto de conservação, ati­rou ao ar com todas as conveniências.
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A vitória de Igura adquire proporções ini­magináveis há poucas horas.
A dado passo, os Cuamatos conseguem importantes troféus de guerra, quando, depois de abatido o gado de tracção e debelada a resis­tência das guarnições, se apoderam das duas peças de artilharia.
Quantos soldados perderam já a vida? Cinquenta, cem, duzentos. Mas o número continua a avolumar-se, escor­rem torrentes de sangue pelos matagais de Mucohimo.
E, contudo, mergu­lhado neste paroxismo de horror e morte, o grupo do tenente Luz Rodrigues prosse­gue, com disciplina inabalável, a sua extraordinária retirada. Está a poucas cente­nas de metros da orla da mata, de onde poderão já divisar-se as instalações amigas do Pembe. Luz Rodrigues e os companheiros não sabem - nem podem prever - que será justamente do lado dos seus irmãos de armas que virá até eles a mais temível das ameaças.
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Pouco antes das nove e meia da manhã, quando assomam à beira da floresta os primeiros fugitivos, desce sobre o acampamento do Pembe um véu de assombro. Alguns homens aparecem a cavalo, esbracejantes, numa confusão de gritos, até que começam a distinguir-se na distância os seus clamores: Tudo morto! Eles aí vêm!
Aguiar, fulminado, não quer crer nos seus olhos. Irrompem da floresta outros fugi­tivos, brancos e negros, muitos deles banhados em sangue, soltando brados de ar­repiar. Tudo derrotado! Tudo morto!
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O governador, de cabeça perdida, monta a cavalo e rompe numa galopada furiosa rumo ao arvoredo. Recobrando alguma pre­sença de espírito, refreia a corrida, vacila, acaba por regressar ao acampamento. Aqui, à medida que as tropas se vão apercebendo da magnitude do desastre, ins­tala-se a mais profunda das estupefacções.
Chegam mais fugitivos, in­formam que na mata há ainda forças portuguesas assediadas pelo inimigo.
No ângu­lo sueste do quadrado, o alferes Mendes Abóbora abre repentinamente fogo de arti­lharia na di­recção do arvoredo. Uma, duas granadas assobiam no espaço, sobre­voam larga extensão de floresta, vão explodir muito para além da extremidade desta. A inten­ção consiste em interpor uma cortina de fogo entre os Cuamatos e os eventuais fu­gitivos. A verdade, porém, é que esta barragem de artilharia se faz es­tranhamente às cegas, sem alvos à vista.
Mais tarde, Abóbora afiançará a pés jun­tos que foi Aguiar quem lhe deu ordem para disparar, o que o comandante negará com idêntica veemência. Seja como for, do quadrado parte agora uma terceira gra­nada: devido a um problema de alça ou a qualquer deficiência da carga, o projéctil efectua uma viagem muito mais curta do que os anteriores e explode junto à orla da mata de Mucohimo.
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Assim que se ouvem os primeiros estrondos da artilharia, os Cuamatos suspen­dem a perseguição ao grupo do tenente Luz Rodrigues e buscam pressurosamente abrigo em posições mais recuadas. Todavia, vários portugueses sentem também as vidas em perigo devido à metralha. Um deles é o soldado António Exposto, da Bateria Mista de Artilharia, a que pertenceu também o malogrado Pinto de Almeida.
Exposto está prestes a culminar uma longa fuga isolada pela floresta da morte. A dado passo, já muito próximo das saídas da mata, é atacado por um grupo de cuamatos, que o prostram com uma série de golpes. O soldado resvala por uma baixa do terreno, supõe chegados os seus últimos momentos, resolve fingir-se morto. Os Cuamatos desarmam-no, subtraem-lhe as munições, mas deixam-no em paz quando se ouvem as primeiras explosões de artilharia. Exposto compreende o que se passa, cola-se ao solo, encolhe-se, apresta-se uma vez mais para entregar a alma ao Criador. Pensa: Já que me não mataram os pretos, matam-me os brancos. Milagrosamente, conseguirá sair ileso daquele inferno.
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Quem luta também por livrar-se o mais rapidamente possível das armadilhas de Mucohimo é Luz Rodrigues, com o seu grupo disciplinado.
Por uns segundos a es­perança converte-se em certeza, já se avistam as saídas, a segurança acha-se a dois passos. O tenente apressa os homens.
De súbito, dispara-se do qua­drado a terceira granada.
Há um uivo longo nos ares, um estampido brutal, um coro de gritos e ge­midos. O rebentamento produziu-se, com diabólica precisão, no seio da pequena força que lograra transpor, quase incólume, cerca de uma légua de pe­rigos mortais.
Agora, a aventura findou. Imóveis, esfacelados, espalham-se em redor do lugar da explosão os cadáveres de vinte e dois soldados portugueses e dos alferes Joaquim Rodrigues e Santos Nunes. Perdeu também a vida o oficial que brilhantemente os conduziu até à beira da salvação: o tenente Luz Rodrigues jaz estendido, mutilado, o rosto enegrecido, com escoriações no braço que estava er­guido numa posição de defesa da cabeça.
Na floresta, entre os escassos sobrevi­ventes do grupo, reinam o espanto, a dor e a cólera. Cobertos de ferimentos, atur­didos, cambaleantes, gal­gam os derradeiros metros de arvoredo, surgem junto à orla e gesticulam, terríveis, na direcção do acampamento: Ai, cães, que nos mata­ram!
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No entrincheiramento do Pembe, ante as proporções da catástrofe, a confusão e o pânico são neste momento generalizados. Aguiar, esmorecido, ultrapas­sado, as­siste à chegada de bandos tresmalhados de sobreviventes, que es­palham histórias de horror entre os seus camaradas. Contam-se dezenas de feridos: o es­pectáculo que oferecia o hospital de sangue era de molde a incutir pavor em ânimos des­prevenidos. São recuperados alguns cadáveres, poucos, apenas os que se encon­tram caídos mais perto da borda da mata, como o tenente Luz Rodrigues, o alferes Joaquim Rodrigues e meia dúzia de soldados. Aguiar hesita. Ele teme, acima de tudo, que os lengas se decidam a explorar o seu estrondoso sucesso: O inimigo era inquestionavelmente valente e ousado e mais o seria depois da vitó­ria.
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O coman­dante vislumbra enfim o pretexto para a retirada por que parecera aguardar durante seis longos dias junto da margem do rio. E explica-se: As notícias aterradoras que as praças poupadas pelo desastre traziam para o acampamento, a sua excitação perante os acontecimentos, a vista dos mortos e feridos, causa­ram indubitavel­mente um abatimento moral nas forças da coluna. O pânico e o pavor são con­tagiosos. Manda então que se retroceda para o forte do Humbe. Embora não dê conta disso, a sua sorte à testa da expedição chega a estar por um fio, quando o corpo de oficiais, dominado pela revolta, pensa em destituí-lo para o substituir pelo capitão Gomes da Costa. Este, de cabeça fria, recusa tomar o co­mando: Não tomei oficialmente, porque era inútil; mas ordenei tudo, sem que o comandante me fosse à mão; pelo contrário.
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A retirada inicia-se pouco depois do meio-dia. Os Cuamatos, sempre protegidos pelo arvoredo, contentam-se com dis­paros soltos sobre as tropas em fuga. Os Portugueses reagem a tiros de ca­nhão. Tudo sem con­sequências de parte a parte. Com a morte na alma, os soldados vol­tam a transpor o rio com o pesado equipamento e percorrem lentamente a es­trada que leva ao forte: Durante a marcha, observámos a passagem, a grande al­tura, das aves de rapina, que se encaminhavam para o campo do massacre, e ouvimos os gritos festivos das hie­nas e de outros carnívoros.
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Para trás, nos tenebrosos labirintos de Mucohimo, fica o quadro horrendo da formidável derrota dos Portugueses, a maior e mais trágica que alguma vez lhes foi imposta na África Negra. Há cadáveres por todos os recantos da floresta, num es­paço de vários quilómetros. Inebriados pela vitória, os lengas esquadrinham deti­damente com as suas etangas os locais da batalha. As montadas que trotam sem rumo são capturadas, alguns feridos recebem o golpe de misericórdia.
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Os guerrei­ros de Igura não se cansam de contemplar a cena, que documenta o mais retumbante triunfo da sua história. Passam pelos corpos dos irmãos-inimigos, os soldados da 6.ª e da 16.ª Companhias Indígenas, que aceitaram envergar as fardas dos invasores para traze­rem a guerra às terras livres dos Ambós: com desprezo, desapossam-nos do calçado e das roupas. Exactamente como fazem aos brancos, que estão agora nus, lívidos e ensanguenta­dos, os olhos vítreos, os crânios esmigalhados pelas mo­cas.
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Dos dezanove oficiais empenhados no reconhecimento fatídico, sobreviveram, apenas, três - o capitão Morais e os al­feres Pais Oliveira e Vendeirinho. O número de mortos eleva-se a cerca de três centenas - cento e onze europeus, cento e trinta e nove soldados africanos e um número indetermi­nado de auxi­liares humbes. Cinco em cada dez dos homens levados por Pinto de Almeida à ar­madilha da Chana B não vão responder à chamada no forte do Humbe. Vieram combatentes de diversos cantos do império lusitano para experimentarem a gelidez da morte nas imediações das águas tépidas do Cunene.
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Vêem-se cadáveres de Angola, dos Açores, de Goa, de Macau. E da metrópole portuguesa, naturalmen­te. Está ali o que resta dos solda­dos Sebastião Coimbra, de Braga, Narciso do Sacramento, de Chaves, Joaquim de Sousa Carvalho, do Porto, Germano de Jesus, de Pombal. Corpos retalhados, re­mexidos, à mercê da alegria e da cobiça dos ven­cedores.
Estão o cabo António Simões Lopes, de Figueiró dos Vinhos, o soldado Joaquim Fialho Pinto, de Évora, o primeiro-sargento José Augusto Carrajola, de Elvas, o soldado Joaquim Damião José, de Faro. Não tardará a haver pesar e pranto em Vinhais, em Curral de Vacas, em Sande, na Várzea de Santarém, em Gondar, no Rosmaninhal, em Aguiar da Beira, na Sertã - em tantos e tantos outros recônditos lugares do pequeno, aventu­roso e trágico Portugal.
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Mas, por enquanto, na floresta de Mucohimo, a hora é ape­nas dos guerreiros cuamatos.
As etangas empreendem o regresso às ombalas de Mogogo e Nalueque, entoando alegres cânticos de vitória. Os jovens e destemi­dos guerreiros trazem consigo as peças de artilharia conquistadas, centenas de ou­tros troféus de guerra e um único prisioneiro - o auxiliar negro que serviu de in­térprete aos invasores. Permitiram-lhe que an­dasse com eles pelos sítios da batalha e dei­xarão que testemunhe as suas comemo­rações, após o que lhe concederão a li­ber­dade para ir contar aos Portugueses como fora inexcedível a bravura dos Cuamatos e esmagadora a sua vitória.
No campo da luta começam entretanto a apodrecer os mártires negros e brancos de um império insólito. Por ali ficarão, abandonados ao tempo e às feras, até restarem apenas os­sadas dispersas.
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No Humbe, entre os Portugueses, imperam o desalento e o caos. Gomes da Costa: O comando manda pôr os feridos na residência e entrincheira-se na forta­leza. Os feridos ao abandono!... Tudo em confusão: homens, animais e material! (...) Este capitão Aguiar demonstra dia a dia a sua inépcia.
Não obstante o mau juízo que fazem dele, o comandante terá um lampejo de energia e lucidez quando se opuser à evacuação do forte e à retirada para noroeste, em direcção ao Lubango, como pretendiam os oficiais.
Com isso, Aguiar salva para os Portugueses a chave do acesso ao além-Cunene, evitando a derrocada das posições planálticas. No resto, vive-se a penosa tomada de consciência da esmagadora dimensão do desas­tre. Trocam-se telegramas apressados, nervosos, cheios de ansiedade. De Aguiar para o governador Custódio Borja, deste para o ministro do Ultramar, do ministro para Borja.
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Aguiar, logo no dia 25: Maior sentimento participar v. ex.ª que colu­na a que mandei fazer um reconhecimento ofensivo derrotada completamente porque a atacaram em grande número.
E no dia 26: Abatimento moral que desas­tre pro­duziu entre tropa foi grande. Não se pode contar com ela para entrar no­vamente em operações.
Borja fica ciente e vê confirmados os seus mais negros presságios. Informa o ministro do Ultramar - e de imediato se abatem, sobre Portugal inteiro, o assombro, as lágrimas e o luto.
Do ministro para Borja: Queira v. ex.ª comunicar comandante coluna que lamento profundamente desastre, mas que sorte das ar­mas está sujeita a estas eventualidades e outros países as têm tido.
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Borja dá no­tícia a Aguiar dos sentimentos do ministro. No Humbe, isto repre­senta um débil lenitivo para os sobreviventes, que procuram exorcizar os seus fan­tasmas através de tocantes cerimoniais fúnebres. Amortalham em serapilheiras o tenente Luz Rodrigues e os outros cadáveres recolhidos, e, por entre as descargas da ordem, fazem-nos baixar à terra madrasta e quente do Humbe. O que sobrou da coluna ajoe­lha, muitos dos soldados choram, Gomes da Costa vocifera oratórias heróicas dian­te das sepulturas:
Soldados! O ideal, a consolação suprema e o últi­mo desejo do soldado que não pôde vencer é uma bala inimiga na testa e um palmo de terra a cobri-lo para sempre! (...) O soldado não vence quando quer, mas sempre que pode! Se, porém, ao lutar cai vencido, ao morrer só quer uma coisa: quer que o vinguem!
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Lisboa, um ano depois. No dia 25 de Setembro de 1905 fica a saber-se, por uma certa página do prestigioso jornal O Século, que o tempo se conserva brusco e que os aguaceiros transformaram as ruas em lodaçais tristes, afastando delas a cor e a animação do costume. Não houve, por isso, músicas nos passeios.
Há informa­ção de que em Sintra se pensa numa manifestação de simpatia à rainha Amélia, por ocasião da sua retirada da vila.
Em Cascais, devido à violência do temporal, não puderam realizar-se as regatas previstas.
Na Covilhã, um matador de por­cos de­mentado por ciúmes atacou a esposa com a faca do ofício.
O conselheiro João Franco, ilustre chefe do par­tido regenerador-liberal, partirá com a mulher e o fi­lho, no comboio das nove e meia da noite, para a sua casa do Alcaide.
A cultura de cana sacarina prospera na província de Moçambique e vão de vento em popa as obras do porto de Lourenço Marques.
Naufragou no Amazonas o vapor Cyril, abalroado pelo Anselm por imperícia dos práticos.
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A página do jornal informa ainda que se recorda em Portugal, nesse dia 25, um funesto acontecimento:
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É hoje dia de luto nacional e mui principalmente para as armas portu­guesas, por passar o primeiro aniversário do trágico massacre das nossas forças na margem esquerda do Cunene (...). Atacados de surpresa por forças cuamatas muito superiores, não temendo a aventura perigosa que se ia travar, mal imaginando o seu fim tenebroso, oficiais e praças, numa comunhão de pensamento, somente se lembraram de que, ali, no interior do sertão, repre­sentavam a honra do País, que deviam conservar imaculada, e o nome portu­guês, que tinham de levantar bem alto.
.Na mesma página de O Século, na parte reservada aos sufrágios, podia ainda ler-se uma comunicação lacónica: Amanhã, pelas 11 horas da manhã, na igreja dos Mártires, rezar-se-á uma missa por alma do tenente Luz Rodrigues, outra vítima da catástrofe, missa a que tencionam assistir os oficiais do batalhão de caçadores de el-rei, a que o desditoso extinto pertenceu. (...)".
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(José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento - Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos - Editorial Estampa - Lisboa - 1999)
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