Ela é mãe e chama ele de mano. Ela é Mãe Carmen de Oxum, e mamãe Oxum está saindo de seus olhos em forma de água salgada enquanto ela nos conta o quanto gosta “do Mano”.
O Mano a que a Mãe se refere é Mano Brown, rapper do grupo Racionais MC’s. Carmen, mãe de cinco filhos homens, tem algo muito eloquente a dizer sobre ele: “O Mano me ensinou a criar meus filhos com as letras dele”.
A gente também chora junto com a mãe de Oxum, chora mais ao se dar conta dos vínculos de sangue que ligam os meninos e homens do rap a gente tão diversa quanto mães de santo, playboys e patricinhas, sambistas feito Leci Brandão etc. e tal.
O Mano não está aqui conosco, mas a companheira dele está. Foi ela, a advogada e empresária Eliane Dias, que nos reuniu todas aqui nesta tarde de sábado.
Aqui é o Ilê Olà Omi Asèopoarakà, uma casa de candomblé estabelecida na Grande São Paulo, no ABC paulista, na periferia da cidade operária de Diadema, numa casa espaçosa e cheia de verde cujo quintal se abre para uma fresta luminosa da represa Billings.
Eliane não trouxe o marido para o almoço africano de Mãe Carmen. Trouxe, em vez dele, mais de uma dezena de parceiras do grupo Negras Empoderadas – e trouxe de quebra nós, quatro jornalistas (uma mulher e três homens) convidadas por ela para testemunhar o encontro.
As Negras Empoderadas se reúnem mensalmente e se falam a todo momento via WhatsApp. Entre essas mulheres (cerca de 50, atualmente) há gente que é escritora, atriz, fotógrafa, afro-empreendedora, militante dos direitos humanos, baiana da Vai-Vai, alta executiva do ramo de joalheria, organizadora da Feira Preta etc. etc. etc. Há, até, a consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, mediadora informal do grupo empoderado ao lado da sra. Brown.
“A gente vai ouvir a Mãe Carmen do Ilê Olà. Ela tem 63 anos, é uma mulher de extrema influência no Brasil inteiro, faz um trabalho social grande”, explica Eliane, ao sopé do mítico edifício Joelma, no centro paulistano, de onde o microônibus fretado por ela nos levará todas juntas, empoderadas e jornalistas, até a casa de candomblé plantada em pequena floresta às margens da Billings, entre as águas (poluídas) de mamãe Oxum e o concreto (duro) das periferias de Diadema.
“Vou levar a mulherada lá pra conhecer a Mãe Carmen, porque eu conheço elas e conheço a Mãe Carmen, e agora vou juntar todas. Todas estas mulheres aqui superaram muita coisa nessa vida difícil que a gente tem. Todas estudaram, são independentes. São todas empoderadas mesmo”, define Eliane.
Muita água vai rolar nesta tarde de lavar os corações da gente toda.
À chegada no Ilê Olà, em meio a apresentações de danças de candomblé e rodadas de acarajé, começa a fazer sentido o propósito anunciado por Eliane: ela quer fazer se conhecerem mutuamente muitas ialorixás e babalorixás do candomblé, várias mulheres negras empoderadas e poucas repórteres da mídia (predominantemente) branca. (Entre as quatro jornalistas, somos uma mulher nipodescendente, um homem negro e dois homens brancos.)
“É um presente para as mulheres negras”, Eliane justifica. “A gente nunca é considerada, nunca tem nada de especial pra mulher negra no Dia da Mulher. Aí eu quis fazer isso, uma coisa especial pra elas, pra nós.” Estamos no sábado 5 de março de 2016, três dias antes da terça-feira 8 de março, Dia Internacional da Mulher. O que a pouca mídia presente testemunhará é um encontro majoritariamente feminino.
Alexandra, a jornalista negra que é esposa do cônsul-geral da França no Brasil, chegou antes de nós e já parece entrosada com as gentes coloridas que cercam Mãe Carmen e seus dois filhos também militantes da religiosidade afrobrasileira, Pai Karlito de Oxumarê e Pai Claudinho. Ao final da tarde, pedirei a Alexandra um depoimento sobre o passeio junto aos orixás, e ela relatará algumas semelhanças com as mulheres negras daqui, em meio a outras tantas diferenças:
“O racismo aqui não me machuca como no meu próprio país. No meu país, não consigo falar sobre isso em francês, porque é muito visceral para mim. Quando vi aqui Taís Araújo ou Glória Maria falarem com os brancos, eu me dei conta de quanta raiva, quanta dor elas tinham nas caras delas. E eu me vi, vi meu espelho, porque sou igual com os franceses: não tenho paciência, estou machucada, ferida, com dor. Não consigo falar com eles com paciência, empatia, paixão. Aqui consigo”.
Não é que a vida de Alexandra seja exatamente fácil no Brasil, mesmo sob as prerrogativas de que goza por ser consulesa. Ela exemplifica: “Em Salvador eu quis entrar num hotel cinco estrelas, e não me deixaram, até ver que tenho sotaque de estrangeira. Se eu fosse brasileira negra, não poderia entrar naquele espaço”.
Em português, Alexandra discorre fluentemente sobre racismo: “Em recepções na minha casa, pessoas passam na minha frente ou atrás de mim achando que sou uma funcionária. E também, se eu fosse só funcionária, gostaria de não ser invisível. Mas é a primeira vez em minha vida que estou numa posição mais alta que o branco, na posição diplomática, onde tenho um título de poder experimentar o que é ser privilegiada, ser convidada a todos os espaços de poder, de decisão”. E conclui o relato com uma suave provocação: “É muito gostoso”.
Ao final do encontro, Alexandra irá ao microfone no Ilê Olà e contará histórias de uma Europa de que raramente ouvimos falar por aqui. “Havia zoológicos humanos na Europa. Em 1901 havia negros enjaulados embaixo da Torre Eiffel, ‘exposição extraordinária, venham olhar uma mistura de macaco com ser humano'”, diz, antes de lançar nova proposição desafiadora: “O problema do Brasil não é a corrupção. A corrupção existe no mundo inteiro. Na Europa é mais sofisticada, mas existe. É mesmo o racismo no Brasil que é o problema”.
Mãe Carmen também tem história para contar. Sentada à mesa entre Eliane e Alexandra e nós jornalistas, entre vatapás, carurus, frangos, peixes ensopados e sobremesas de acaçás, conta que costuma atender políticos de diversas colorações partidárias, num rol que inclui Paulo Maluf, Geraldo Alckmim, Fernando Haddad e, ninguém mais ninguém menos, Dilma Rousseff.
Diz que não gosta de Maluf (“minha mãe carnal era apaixonada por ele, eu não era”), que um dia mandou buscá-la para lhe jogar búzios ela até hoje não sabe onde. “Eram 22h, peguei meu jogo de búzios e fui. Cheguei num lugar, tinha um helicóptero pra me pegar”.
À mesa do almoço, Eliane diz que, como regra, não se fala de política no grupo Negras Empoderadas. Mas a política é o fio que a conduz quando explica por que quis apresentar a mãe de santo à consulesa francesa. “Mãe Carmen é militante, ela vai nos encontros na política. Alexandra também é muito militante, apanha aqui no Brasil por causa disso, vê coisas tristes. Eu quis mostrar pra ela uma coisa boa, porque na militância a gente tem coisa boa também. Estou até emocionada, e olha que eu sou osso duro de roer.”
Mineira de Curvelo, Mãe Carmen conta histórias de sua família: “Vim para cá pequena. Meu pai era mestre de obras, minha mãe lavava roupa, passava, engomava. A gente tinha uma carroça, pegava lata, papel, saía cedo todo dia, conseguia juntar bastante coisa, e vendia”. A mãe faxinou na casa de “uma pessoa bem importante da televisão”, ela já não sabe se Amaury Jr. ou Jota Jr. ou outro.
“Aos 12 anos fui trabalhar em fábrica. Tinha uma carta do juiz para poder ir trabalhar. Parei os estudos. Trabalhei até o dia que me casei, aí não fui mais trabalhar.” Casada, vieram os filhos, o candomblé, o sumiço do marido (até hoje desaparecido) “Ele não gostou do candomblé, quando meu filho tinha 16 anos ele desapareceu.” O Ilê Olà tem 42 anos, 2o deles vividos no endereço atual à margem da represa.
Mãe Carmen conta que, quando jovem, foi presa “muitas vezes”, apenas por seu envolvimento com o candomblé. O país que prega total tolerância religiosa nem sempre a pratica, quando se trata de religiosidade de matriz africana.
Ela relata um episódio: “Um dia fui presa, e o delegado falou pra mim: ‘Como a senhora se chama?’. ‘Eu me chamo Carmen de Oxum.’ ‘Eu quero saber o nome civil da senhora.’ ‘Sou ialorixá Carmen de Oxum.’ ‘E a senhora faz o quê? Tem o nome de alguém para quem eu possa ligar agora para referenciar a senhora?’ ‘O senhor pode ligar para o senhor Paulo Maluf, para o senhor Franco Montoro. Eles sabem muito bem quem eu sou, e estou sendo presa por professar minha religião?’ ‘Vou pedir para escoltarem a senhora até sua casa.'”
Como se sente Mãe Carmen nessa corda bamba, ora perseguida por policiais, ora assediada por políticos? “Eu penso que nossa religião não pode dizer não. Não pode dizer não. É muito estranho. Você tira fotos, tira fotos, tira fotos, tira fotos. Aí são eleitos. Tem pessoas que nem posso dizer nomes, não gostaria. A gente tira fotos, tira fotos, e o que acontece? Você se sente utilizada, né? Mas você não pode dizer não.”
Há um único político que ela diz que não gostaria de ter que atender: Aécio Neves. Cita as brumas de violência contra a mulher que cercam o atual senador, e critica a postura machista dele nos debates diante da presidenta Dilma, quando era candidato a sucedê-la. Não falamos sobre feminismo, mas é evidente que mora uma feminista em Mãe Carmen de Oxum.
Feliz de poder mostrar às empoderadas as dependências do Ilê Olà, Pai Karlito de Oxumarê traz para sua fala, como Eliane, o tema das dificuldades do dia a dia: “A nossa vida de candomblé nunca foi muito fácil. É uma vida difícil, aqui enfrentamos inúmeros tipos de preconceito”. E traz, como Mãe Carmen, o tema da religião que não costuma dizer não: “O candomblé é a única religião que sempre abre a porta pra todo mundo. O candomblé nunca perguntou pra ninguém o que você é, quem você é, o que você faz, qual é a sua identidade sexual, religiosa. O candomblé só abre as portas pra todos”.
O discurso de Karlito fica mais intenso quando ele pega o microfone diante da comunidade do Ilê Olà, das mulheres negras empoderadas, dos jornalistas desempoderados: “Eu não tenho vergonha. Carrego três bandeiras comigo: sou afrodescendente, sou do candomblé e sou homossexual. Sou casado, tenho um esposo, meu esposo é negro, lutamos muito. Nós não temos vergonha de ser quem somos e aprendemos isso com essa grande mulher que é Mãe Carmen de Oxum, que nos ensinou a respeitar o próximo, a respeitar a nós mesmos e nos fazer respeitar também”.
Pai Claudinho, irmão de Karlito, lidera com orgulho o preparo da lauta refeição para toda a comunidade mais visitantes. “A comida é africana, feita pelo meu irmão Pai Claudinho e pelas meninas aqui da roça”, orgulha-se Karlito.
À mesa, Carmen fala de comida e figurino e cidadania. “Pra nós esta é nossa roupa de gala, que a gente veste pra receber, porque o convidado é extremamente importante. Todos têm que comer no candomblé”, diz. E o dito automaticamente a faz lembrar de suas responsabilidades: “Você comeu, meu filho? Fernanda, vocês estão comendo?”.
O orgulho se espalha pela casa, extravasa.
Mãe Carmen conta, sorridente, que não perde as apresentações do Mano e dos Racionais em São Paulo: “Eu gosto demais do rap dele. Onde tem show eu vou, com meus filhos, minhas noras”.
Conta, num sorriso matreiro, que, das músicas do Mano, suas prediletas são “Homem na Estrada” e “Vida Loka”. Gargalhamos com os olhos molhados de Oxum quando ouvimos a expressão “vida loka” pronunciada pela boca da senhora de 63 anos, mãe de santo, toda paramentada com lindos panos africanos. O poder que ela emana empodera a todas nós.
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